Nota da Congregação sobre Direito, Segurança Pública, Racismo e Democracia

A Congregação da Faculdade de Direito, em Sessão Ordinária do dia 27 de julho de 2020, emitiu uma nota sobre "Direito, Segurança Pública, Racismo e Democracia", confira:

 

 

Nota Congregação da Faculdade de Direito da UFBA, em Sessão Ordinária do dia 27 de julho de 20201

 

O racismo, “consciência historicamente estruturada de poder e dominação total [...] exercida concretamente contra uma raça e em benefício de outra”2, implica em impactos mensuráveis de discriminação, violação de direitos e morte para o povo negro e, por outro lado, sustenta privilégios e posições de poder para a minoria branca3. Essa configuração assimétrica das relações raciais no Brasil constrói a sociedade, as instituições e a própria UFBA.

Diversos indicadores socioeconômicos4 relativos à renda, escolaridade, trabalho, terra, água, saneamento básico, aglomeração residencial, insegurança alimentar, encarceramento em massa, mortes prematuras por violência policial, desterritorialização de comunidades quilombolas (urbanas e rurais) e povos originários, ou doenças evitáveis, além da dificuldade do acesso à saúde pública dão os contornos necropolíticos5 e estruturalmente racistas que marcam a relação do povo negro com o Estado e com a fração branca da sociedade civil brasileira.

Os índices de precariedade das condições de (não) vida indicam desvantagens acumuladas por gerações, corolário dos quase quatro séculos de escravização, mas não só. No pós-abolição, o discurso e prática racistas foram atualizados, com isso, negras e negros foram e são sistematicamente submetidos(as) às violências ativas e omissivas, simbólicas e concretas, que impedem o acesso digno aos pactos sociais do Estado Democrático de Direito.

O contexto pandêmico atual reafirma as desigualdades raciais através de indicadores que demonstram maior letalidade da doença entre o povo negro e o aumento da violência do Estado através de ações policiais em favelas e comunidades periféricas.

Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que a letalidade policial em São Paulo cresceu 31% no período entre janeiro e abril de 2020, tendo o mês de abril, durante a vigência da quarentena, aumento de 53% no comparativo com o registrado em 20196. No Rio de Janeiro, o aumento foi de 43% durante o mesmo mês de abril, de acordo com os dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), em 26/05/20207. O mês de maio foi marcado por mortes de jovens negros pela Polícia em comunidades cariocas8. Seguem alguns exemplos. 

  1. Iago César dos Reis Gonzaga, de 21 anos, da favela do Acari, moradores denunciaram policiais por tortura e assassinato;
  2. João Vítor da Rocha, 18 anos, baleado e morto em operação policial na Cidade de Deus;
  3. o adolescente João Pedro Mattos, de 14 anos, atingido pelas costas, dentro de casa, por um tiro de fuzil durante operação policial no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo.

A Bahia é o segundo estado da Federação com mais mortes em operações policiais, feminicídios e chacinas, revela a pesquisa “Racismo, Motor da Violência”, desenvolvida pela Rede de Observatórios da Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)9. Em Salvador, no dia 14 de junho, ocorreu o assassinato do menino Micael Santos, de 11 anos de idade, no Vale das Pedrinhas, após a ação de policiais militares.

 

Conforme noticiado pela imprensa e denunciado pela organização baiana Reaja ou será Morta, Reaja ou será Morto10, no dia 21/06, foi realizado um ato em memória do menino Micael Santos, com a presença de familiares e amigos(as). Diversas viaturas da Polícia Militar, dentre elas, a viatura que atuou na ação que resultou na morte de Micael, com a presença física do policial responsável pelos disparos, estiveram presentes, o que foi compreendido como uma tentativa de intimidação dos familiares e moradores(as) do bairro, desrespeito das autoridades pela morte de uma criança e demonstração da impunidade dos responsáveis por esses atos.

As referidas mortes no Brasil ocorreram no mesmo período do assassinato do norte-americano George Floyd pela Polícia de Mineápolis, no Estado de Minessota, que gerou protestos em muitas cidades dos EUA e do mundo, amplamente divulgados pela grande mídia brasileira, que atua seletivamente ao fazer escassa e tímida cobertura sobre mortes semelhantes aqui. No ponto, vale frisar que a mesma imprensa sensacionalista que difundiu a comoção internacional pelo assassinato de Floyd estimula, sistematicamente, a violência policial contra a juventude negra periférica brasileira, muitas vezes com a conivência das instituições públicas, contribuindo, assim, para a criminalização e o genocídio desses(as) jovens.

O racismo é o fator estruturante desse quadro e precisa ser abordado para além das conjunturas, exigindo um cuidado ético para estabelecer as ações de enfrentamento, sem que a pauta antirracista seja capturada e delimitada por interesses que reforcem relações de poder e dominação. Comparativamente aos Estados Unidos, a Polícia brasileira mata até cinco vezes mais que a Polícia norte-americana11, o que demanda uma ação integrada de todos os segmentos sociais para constranger publicamente todas as instâncias estatais que, direta ou indiretamente, contribui para o genocídio do povo negro, notadamente, os(as) mais jovens.

Genocídio é uma categoria sociológica e jurídica que nega o direito à vida de grupos sociais  e designa crimes que têm como objetivo a eliminação da existência física de grupos nacionais, étnicos, raciais e/ou religiosos. O genocídio foi regulado em legislação doméstica através das Leis n.º 7716/1989 (§1º, do art. 20) e n.º 2.889/56, recepcionada pela Constituição de 1988, bem como pelo Decreto n.º 30.822/52, que promulgou a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, e o Decreto n.º 4388/2002, que promulgou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

Em 2016, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens (CPIADJ) apurou a existência de “leniência em todo o sistema da justiça criminal em relação a essas execuções extrajudiciais”12, apontando expressamente protocolos inadequados das Polícias Militares, como os autos de resistência, e a “conivência do Poder Judiciário e Ministério Público com essa realidade”, fazendo recomendações aos governos estaduais e demais órgãos do sistema de justiça.

Em 2017, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, pela violação do direito às garantias judiciais de independência e imparcialidade de investigações, devida diligência, análise de recursos em prazo razoável, ausência de proteção judicial e garantias judiciais, e violação do direito à integridade pessoal, em contexto das mortes ocasionadas durante operações da Polícia, em 1994 e 1995, que resultaram em duas chacinas, com 13 mortes e denúncias de torturas e estupros contra a população local.

Em recente decisão do STF, de 05/06/2020, na ADPF n. 635, o Ministro Edson Fachin, em caráter liminar, determinou que só devem ocorrer operações policiais em comunidades no Rio de Janeiro durante a pandemia do COVID-19 em hipóteses absolutamente excepcionais, devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, objetivando reduzir os transtornos causados aos(às) moradores dessas comunidades e reduzir os números da letalidade e violência policial, nesse momento tão difícil para as pessoas pauperizadas13.

Neste contexto, cabe frisar o papel político das instituições de ensino superior no enfrentamento deste quadro, em especial a FDUFBA, instituição centenária, responsável pela construção de debates públicos para a formação de discentes, docentes e da comunidade externa, nos mais diversos temas e debates da sociedade civil, onde o Direito tem um papel central de reprodutor de desigualdades, mas também uma ferramenta fundamental no enfrentamento às violências estruturais.

Ante o exposto, a Congregação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia se manifesta publicamente:


  1. repúdio ao genocídio do povo negro pela ação da Polícia Militar, estimulada pela imprensa sensacionalista e pela leniência do sistema nacional de justiça;

  2. apoio à conversão da decisão liminar na ADPF 635 em definitiva pelo Plenário do STF, de modo a se tornar relevante precedente para atuação das Polícias em todo território nacional e;

  3. especificamente sobre a atuação da Polícia Militar do Estado da Bahia, pela adoção de providências adequadas de investigação da morte do menino Micael Santos, com divulgação das ações realizadas, bem como sejam adotadas medidas de contenção e de protocolo específico da atuação policial para o momento de pandemia;

  4. apoio ao pedido da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) ao Conselho Nacional de Justiça (PGR- 00106903/2020), já acatado em caso específico no Tribunal de Justiça da Bahia, e também acatado pela Justiça Federal em diversos outros Estados que requer a adoção de medida semelhante à Recomendação n.º 62/2020 que recomende a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados coletivos de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou mesmo extrajudiciais motivadas por reintegração, entre outros, com o fim evitar o agravamento da situação de exposição ao vírus;

Ademais, a Congregação se compromete a apoiar a realização, no âmbito da FDUFBA, de debate público amplo sobre o tema da “segurança pública, relações raciais e democracia”, com participação de familiares de vítimas de mortes em operações policiais, dos movimentos sociais, de especialistas das áreas das relações raciais, criminologia, ciência política, sociologia e direito penal, e de órgãos oficiais do sistema de justiça baiano e nacional, especialmente a Polícia Militar, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder Judiciário, em data mais breve possível.

Merece salientar ainda que, como dito acima, a configuração assimétrica das relações raciais no Brasil repercute na sociedade, nas instituições e na própria UFBA. Nesse sentido, reconhecemos a existência de uma agenda interna da nossa Universidade para o enfrentamento do racismo, em suas diversas manifestações, presente em diversas práticas, discursos, racionalidades, desde as relações entre professores(as), servidores(as) técnico-administrativos(as) e estudantes, com expressões e denúncias de discriminações diretas ocorridas no ambiente universitário, até os procedimentos consolidados que dificultam a implementação das políticas afirmativas na graduação, pós-graduação e concurso para docentes, passando também pelo desprezo da  Lei n.º 10.639/2003 na elaboração e atualização dos projetos político-pedagógicos dos cursos.

Assim, a Congregação aprovou a instituição de Grupo de Trabalho na FDUFBA,  com composição total de 15 (quinze membros), sendo 08 (oito da FDUFBA/UFBA) e 07 (sete externos), constituído por docentes, servidores(as) técnico-administrativos(as) e estudantes da Faculdade de Direito e da Universidade Federal da Bahia, bem como, participação de ativistas, membros dos movimentos sociais e representantes de entidades e instituições, com o objetivo de debater as relações raciais e formular propostas para promover uma reorientação institucional da questão racial na Universidade, especificamente:


  1. Diagnóstico e sistematização das desigualdades e discriminações geradas pelo racismo, em suas variadas dimensões, no âmbito da FDUFBA; 

  2. Nos termos da Lei nº 12.288/2010, formulação de minuta de documento normativo com previsão de programas e medidas especiais para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.

 

Sala da Congregação, 27 de julho de 2020

 

Julio Cesar de Sá da Rocha

Presidente da Congregação


1 A nota foi proposta pelos/as docentes:  Ana Flauzina, Camila Magalhães, Felipe Estrela, José Ponciano de Carvalho, Maurício de Azevedo, Misael França, Poliana Ferreira, Samuel Vida, Sara Cortês e Tatiana Emília Gomes.

2 MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. 2. ed. Belo Horizonte: Nandyala, 2012. Com essa elaboração, Moore se distancia daquelas concepções de que o racismo resultaria de uma construção ideológica, logo permeável a ações educativas, à consciência religiosa ou moral etc.

3 No Brasil, diferenciais expressivos entre brancos e negros, sempre em detrimento do segmento negro, são encontrados em todos os âmbitos. O índice de mortalidade infantil da população negra é 40% maior do que no caso da população branca, de acordo com dados da UNICEF. As mesmas discrepâncias ocorrem quando observados variáveis como os rendimentos do trabalho (os negros percebem em média rendimentos 40% menores que os brancos), o desemprego (cujo índice para o trabalhador negro se encontra em patamares 50% acima do que no caso dos trabalhadores brancos), os indicadores de escolaridade (os negros têm em média menos 1,6 anos de estudo com relação aos brancos), bem como no que se refere ao acesso a serviços públicos em geral, entre outros (Ver PNAD/IBGE, 2014). O cenário geral se caracteriza pela existência de uma diferença significativa entre o padrão de vida de negros e brancos no Brasil. Relatório Final 2016, da Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens (CPIADJ), criada, pelo Requerimento nº 115, de 2015, de autoria da Senadora Lídice da Mata (PSB/BA), págs. 22 e 23. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-... assassinato-de-jovens

4 A título de exemplo, ver INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades Sociais por Raça ou Cor no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo... Acesso em: 19 jul. 2020. 

5 Cf. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 Edições, 2019. 

6O levantamento foi realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com base em dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública e das corregedorias das polícias. Os números abrangem tanto as mortes cometidas por policiais em serviço quanto aquelas envolvendo policiais de folga. Os dados referentes ao mês de abril deste ano constam de boletins do Centro de Inteligência da Polícia Militar e da Corregedoria-Geral da Polícia Civil publicados em 30/05/2020 no “Diário Oficial do Estado”. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/01/mortes-cometidas-pe... abril-de-2020-crescem-31percent-em-sp.ghtml

7Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/mortes-por-policiais-cre... durante-quarentena-na-contramao-de-crimes.shtml

11Na tese de doutorado defendida em 2018,

12 Relatório Final 2016, da Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens (CPIADJ), criada, pelo Requerimento nº 115, de 2015, de autoria da Senadora Lídice da Mata (PSB/BA), pág. 45. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-... assassinato-de-jovens  

13Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=444960

 

 

Para acessar a nota na íntegra, clique aqui.  

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